ALTERIDADE: substantivo feminino
Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto.
Filosofia - Situação, estado ou qualidade que se constitui através de relações de contraste, distinção, diferença.
"Retrato de um Certo Oriente", dirigido por Marcelo Gomes, é uma adaptação livre do romance de Milton Hatoum, Relatos de um Certo Oriente. O autor declarou ter escrito "um livro para não ser filmado", e justamente por isso Marcelo escolheu adaptá-lo para as telas, trazendo um título que revela bastante sobre a natureza de sua transposição.
No fim dos anos 1940, um navio de refugiados libaneses chega na Amazônia, dando início à saga dos irmãos católicos Emilie e Emir pela vastidão da selva brasileira. No filme, o fluxo de consciências apresentado no livro, narrado por um personagem diferente a cada capítulo, é trocado pela exploração da fotografia como artifício de criação de memória e identidade. A transposição não é novidade para o diretor – na verdade, é uma de suas maiores características – que, de certa forma, volta às origens nesse filme, que compartilha a premissa do olhar estrangeiro sobre o Brasil com seu primeiro longa, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005). Naquela ocasião, o cineasta explorava um protagonista alemão refugiado no sertão brasileiro. Agora, usa seu olhar sertanejo sobre a Amazônia e personagens que vêm de mais longe ainda, num roteiro que trabalha alteridade, fotografia, memória e religião.
Antes de qualquer enredo, o elemento mais chamativo do filme é a fotografia. O filme em preto e branco homenageia a "fotografia de retrato" como um todo, utilizando lentes do século retrasado adaptadas para câmeras de cinema modernas e o foco como recurso narrativo, enquanto realiza um belo estudo de linguagem fotográfica em seus enquadramentos, que são como fotos em movimento. A própria obra se apresenta como um retrato da época, demonstrando um domínio da linguagem cinematográfica impressionante ao investigar os retratos como construção de memória e a memória como construção de identidade, o que é representado pelo personagem fotógrafo, que, em seu laboratório de revelação, acende fortes luzes vermelhas. Porém, a história é completamente focada em seus personagens – a fotografia sai deles, e não o contrário.
Durante a viagem de barco, Emilie conhece Omar, um libanês muçulmano, e se apaixona, dando início a um relacionamento proibido pelo irmão, que se apropria de um preconceito sem sentido como uma forma de vingança contra a destruição que a guerra trouxe para suas vidas. Porém, em pouco tempo, a maré voraz do oceano de horizonte infinito é trocada pelos rios calmos da selva infinitamente densa, e o som das ondas é substituído pelos roncos de uma mata que age como um organismo vivo. Não vemos animais e predadores, apenas insetos e minhocas, mas o excelente trabalho de som faz questão de nos fazer imaginar o que está espreitando por trás das muralhas de árvores da selva sem cor, que perde sua exuberância, mas representa perfeitamente a inquietação e curiosidade dos estrangeiros vindos de uma terra desértica, como um brasileiro intrigado que tenta adivinhar o rosto de uma mulher árabe coberta por um véu.
Emir veio para o Brasil para fugir da guerra religiosa, mas a presença de Omar em sua vida faz com que ele inicie uma versão pessoal do mesmo conflito. Não importa para onde ele olhe, em nossa terra, o amor entre ele e sua irmã sequer é notado, e o namoro que seria proibido em seu país natal aqui é incentivado. Emilie e Omar rapidamente se adequam à nova vida, mas Emir nunca se sentirá à vontade numa terra estrangeira enquanto não estiver à vontade consigo mesmo – o que ainda não era possível naquele Brasil – e isso é tratado de forma tão sutil quanto a natureza de sua expressão na época.
Todos os elementos do filme se unem para retratar um Brasil que está aberto à possibilidade de ser um refúgio paradisíaco, formando o tema mais forte do filme – a alteridade. Esse filme pernambucano, adaptado de um livro amazonense sobre imigrantes libaneses convivendo com indígenas e pessoas da cidade, brancas, pardas e pretas, com atores - de performances impressionantes - que falam árabe, francês, português e nheengatu, é um atestado da riqueza cultural gerada pelo encontro de povos distintos e de como eles se beneficiam com a troca de vivências. O fotógrafo tira o primeiro retrato de indígenas, aprimorando seu trabalho e os presenteando. O estrangeiro é curado por um xamã.
A cena mais forte do filme, onde os indígenas, um católico e um muçulmano rezam simultaneamente com o mesmo objetivo, é tão impactante que demorará muito para sair do meu imaginário, assim como o choque do momento da resolução do conflito. A obsessão por enquadramentos belos muitas vezes não combina com a emoção sendo representada, parecendo pura estética, mas em momentos como esse é impossível não se impressionar.
Perto do fim do filme, algo semelhante é demonstrado no cenário, mas nunca discutido ou mencionado. Não precisa, pois nesse ponto já entendemos que estamos muito distantes do deserto árido. Estamos na terra da selva e da água, que poderia ser um verdadeiro paraíso, se não fossem as pessoas que transformam o arco-íris da riqueza cultural brasileira em uma faixa preta e branca. Só nos resta apreciar os retratos dos raros momentos em que a luz passa pelo prisma e colore nossas vidas.
"Retrato de um Certo Oriente" foi exibido no Festival do Rio 2024, seguido de debate com a produção e elenco. Estreia em breve nos cinemas.
- Pedro Soares Barbosa
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